O Castelo Rá-Tim-Bum: uma abordagem urbanística

Júlio Caldeira
20 min readJul 25, 2021

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Nos anos 90 a TV Cultura começou a exibir o programa Castelo Rá-Tim-Bum. Foi um marco para as crianças da época, quase todas elas se lembram com muito carinho do programa e de seus carismáticos personagens. Frequentando blocos de carnaval fantasiado de Tíbio, também percebi que pessoas que viveram a infância já no terceiro milênio também são grandes entusiastas do Castelo Rá-Tim-Bum. Nas primeiras vezes em que eu vesti a fantasia, achei que quem a reconhecesse entregaria na hora que, caso estivesse disputando algum campeonato esportivo, poderia tranquilamente jogar a categoria 30+. Porém, ao longo do desfile dos blocos, pessoas da categoria Sub-20 e até da categoria Dente-de-leite também reconheceram a fantasia. A explicação é razoavelmente simples: nada melhor foi produzido nos últimos 30 anos, por isso o programa continuou sendo reprisado na TV e em canais da internet com grande sucesso entre o público infanto-juvenil (também entre adultos) de todo o país.

Mesmo o sucesso do programa permanecendo inalterado, muita coisa mudou dos anos 90 pra cá: a seleção brasileira masculina de futebol deixou de ser respeitada, a Portuguesa não joga mais a primeira divisão, Ivete Sangalo saiu da Banda EVA e bandas com músicos tocando um teclado em forma de guitarra deixaram de fazer performances pré-gravadas em programas dominicais na TV aberta. Muitas mudanças ocorreram também no campo do planejamento urbano, seja na legislação urbanística ou no paradigma das políticas públicas referentes à ocupação da cidade e à forma de se utilizar o espaço urbano. Este texto pretende abordar algumas destas mudanças e explicar alguns conceitos urbanísticos utilizando como exemplo um edifício em especial: o próprio Castelo Rá-Tim-Bum. Será proposta uma análise do Castelo e de sua inserção no contexto urbano da cidade hipotética na qual o edifício está localizado. Para tal, convido os leitores e leitoras a se imaginarem como habitantes desta cidade, como alguém que vê o Castelo da rua, não como um telespectador que assiste o que se passa dentro do Castelo na tela de sua TV em sua casa numa cidade real do Brasil.

Uma maneira de iniciarmos a análise de um edifício é falando de seu entorno, caracterizando o ambiente no qual ele se encontra. Pela imagem do Castelo é possível perceber que o edifício está envolto por edifícios, bem inserido no contexto urbano.

Fonte: Página do Facebook da Exposição Castelo RáTim-Bum

O fato de existirem muitos edifícios numa região significa que muitas pessoas querem morar lá e estão dispostas a pagar por isso, o que faz com que a construção de edifícios seja vantajosa para incorporadoras e construtoras. Provavelmente a terra na região na qual o Castelo está localizada é muito disputada, não é à toa que o Dr. Abobrinha deseja adquirir o terreno para construir um prédio de 100 andares e vender apartamentos ou salas comerciais, o que lhe renderia muito dinheiro. Seria difícil imaginar o Dr. Abobrinha tentando construir um prédio de 100 andares no lugar do Castelo do Conde Drácula, isolado no meio da Transilvânia, onde não há nada ao redor e seria muito difícil realizar serviços básicos como acessar hospitais ou pegar um ônibus. A taxa cobrada por aplicativos de entrega de comida provavelmente seria muito alta no Castelo do Conde Drácula. Imagine então o quanto custaria um Uber pra voltar do bar…

O fato de o Castelo ser uma construção antiga torna provável a hipótese de que esteja localizado em uma área central da cidade. A própria abertura do programa mostra que quando o Castelo foi construído não havia edificações no seu entorno, conforme a ideia contida na famosa expressão “quando eu cheguei isso aqui era tudo mato”, cunhada pelo mesmo autor de “antigamente o cara jogava futebol por amor à camisa, hoje ele só pensa na grana”.

Uma olhada mais atenta aos prédios no fundo da imagem nos faz perceber que existe uma concentração razoável de edifícios com cerca de dez andares, basta contar verticalmente as janelinhas. É muito improvável que em uma cidade pequena aconteça tal concentração, portanto vamos supor que se trata de uma cidade brasileira de médio ou grande porte, o que nos permite levantar algumas suposições como a de que na cidade do Castelo Rá-Tim-Bum existam bairros periféricos nos quais houve ocupação informal e nos quais foram construídas moradias irregulares (ou parcialmente regulares ou regularizadas após sua consolidação no ambiente urbano). É bem provável também que nesta cidade existam pessoas que não têm onde morar, outras que vivem em moradias precárias e outras que enfrentam grande dificuldade para pagar aluguel todo mês. Também podemos supor que a região do Castelo, por ser uma região central, possui maior oferta de serviços públicos como hospitais, praças, transporte público, delegacias de polícia e etc. Também por estar em uma região central, do Castelo é possível acessar uma grande quantidade dos empregos oferecidos pelo mercado formal fazendo deslocamentos razoavelmente curtos se comparados ao tempo médio de deslocamento dos habitantes da cidade.

Para dar seguimento à nossa análise, vamos primeiro apresentar alguns conceitos sobre edificações para depois falar sobre o impacto que tais características dos edifícios têm na cidade como um todo.

1) Área do Terreno

Todo edifício é construído em cima de um terreno. A quantidade de solo que este terreno ocupa na cidade é a Área do Terreno. Com base na foto podemos fazer uma aproximação bem grosseira de que o terreno do Castelo Rá-Tim-Bum possui 100mx100m (10.000m²), ou seja, 1 hectare (1ha); o que equivale a dizer que o terreno do Castelo ocupa mais ou menos um quarteirão inteiro. Vale lembrar que o autor deste texto é gente boa, então as estimativas grosseiras são feitas de modo a facilitar as contas.

2) Área Ocupada

Nem sempre um edifício ocupa todo o terreno no qual ele está inserido. É comum haver um espaço que não foi destinado à edificação entre o edifício e os limites do terreno. Na imagem do Castelo é possível ver que existe uma área de jardim no terreno, que não foi ocupada por nenhuma construção. A Área Ocupada é a quantidade de solo sobre o qual a edificação (considerando eventuais projeções da edificação no solo) foi erguida. Vamos supor que o Castelo ocupa uma área de aproximadamente 5.000m².

3) Área Construída

Algumas edificações possuem mais de um andar, portanto existem áreas habitáveis de uma edificação que não estão em contato direto com o solo do terreno. A soma total das áreas de todos os andares de um edifício é chamada de área construída. Caso a edificação seja térrea a área construída será igual à área ocupada, caso a edificação tenha mais de um andar a área construída será maior do que a área ocupada. O Castelo tem cerca de quatro andares (apesar de a edificação ser alta o pé-direito dos andares também é alto), então vamos assumir que sua área construída seja de 20.000m² (uma construção que ocupa 5.000m² de terreno e possui 4 andares).

4) Taxa de Ocupação (TO)

É a razão entre a Área Ocupada e a Área do Terreno. É interessante observar que a Taxa de Ocupação independe da quantidade de andares na edificação. A Área Ocupada pelo Castelo é de 5.000m² e a Área do Terreno de 10.000m², portanto a Taxa de Ocupação é de 5.000m²/10.000m², ou seja, 0.5.

5) Coeficiente de Aproveitamento (CA)

É a razão entre a Área Construída e a Área do Terreno. É interessante observar que edificações de diferentes alturas podem possuir o mesmo CA. Um edifício de 5 andares e um de 10 andares, ambos construídos em terrenos de mesma área, terão o mesmo CA se o edifício de 5 andares ocupar uma área duas vezes maior do que a ocupada pelo edifício de 10 andares. A área construída do Castelo é de 20.000m² e a Área do Terreno é de 10.000m², portanto o CA é 20.000m²/10.000m², ou seja, 2.

6) Densidade construtiva

É a quantidade de área construída em determinada porção de área. Geralmente esta porção de área não se refere a terrenos, mas sim a áreas de maiores dimensões, como bairros, distritos ou municípios. Considerando apenas a área construída pelo Castelo temos uma Área Construída de 20.000m² em uma área de 1 hectare, portanto a densidade construtiva é de 20.000m²/ha

7) Densidade populacional

É a quantidade de pessoas residentes em determinada porção de área. Geralmente esta porção de área não se refere a terrenos, mas sim a áreas de maiores dimensões, como bairros, distritos ou municípios. No Castelo residem Nino, Dr. Victor e Morgana. A cobra Celeste, o Gato da Biblioteca, a gralha Adelaide, a dupla de sapatos falantes Tap e Flap, os Passarinhos, as fadas do lustre Lana e Lara, Mau, Godofredo, o Ratinho e o Relógio falante todos residem no Castelo, mas não são pessoas. Tíbio e Perônio não residem no Castelo, assim como Telekid. Aliás o personagem interpretado por Marcelo Tas respondia as perguntas que o Zequinha fazia e os demais personagens não conseguiam elaborar uma resposta melhor do que “porque sim, Zequinha!”. As respostas eram gravadas remotamente e enviadas ao Castelo por um aparelho, de modo que não é exagero afirmar que o personagem foi um dos precursores do Home Office. Na região do Castelo, a densidade populacional é de 3 habitantes por hectare, ou 3 hab/ha.

8) Densidade habitacional

É a quantidade de unidades habitacionais em determinada porção de área. Geralmente esta porção de área não se refere a terrenos, mas sim a áreas de maiores dimensões, como bairros, distritos ou municípios. Unidades habitacionais podem ter tamanhos diferentes. Edifícios diferentes construídos em terrenos de mesmo tamanho, com a mesma TO (Taxa de Ocupação) e o mesmo CA (Coeficiente de Aproveitamento) podem ter densidades habitacionais diferentes, pois se em um dos edifícios as unidades forem de 75m² e no outro as unidades forem de 150m², o primeiro terá o dobro da densidade habitacional do segundo. O Castelo Rá-Tim-Bum é uma residência unifamiliar, portanto sua densidade habitacional é de 1 unidade habitacional/hectare.

É interessante ressaltar que um bairro com edifícios de muitos andares não significa que existem muitas pessoas morando neste bairro. As unidades habitacionais podem ser grandes, o que faz com que a densidade habitacional não seja muito alta. Também pode acontecer de os edifícios possuírem recuos, fazendo com que a TO seja pequena, portanto ao considerarmos a área do bairro como um todo vemos que a densidade construtiva não é tão alta. Em outras palavras: verticalização não é sinônimo de adensamento populacional.

Um exemplo claro de densidade demográfica alta em um local onde a verticalização não é muito intensa é o distrito de Eixample, em Barcelona. Nele as construções são muito próximas umas das outras, então mesmo os edifícios não sendo gigantescos arranha-céus a densidade demográfica do distrito é de 354 hab/ha, como mostra o site densityatlas.org. O distrito mais denso da cidade de São Paulo, a Bela Vista, possui 267 hab/há, segundo dados da Prefeitura do município. As cidades brasileiras são, em termos gerais, pouco densas. Nelas é muito comum encontrar edifícios isolados nos lotes, com recuos (algumas vezes inclusive obrigatórios por lei) frontais e laterais. Mesmo os bairros formais sendo pouco densos, algumas favelas possuem elevada densidade demográfica, como é o caso de Paraisópolis, favela localizada no bairro paulistano do Morumbi, cuja densidade demográfica é próxima de 600 hab/ha.

Imagem do distrito de Eixample, em Barcelona (Fonte: www.barcelona-journal.de)

Vamos agora falar de algumas mudanças que ocorreram no paradigma do planejamento urbano dos anos 90 para cá.

Ao longo do século XX, o carro ganhou muita importância na sociedade pelo conforto e praticidade que tal veículo oferece para a realização de deslocamentos. Com o advento do carro, a necessidade de que residências fossem próximas aos distritos centrais da cidade diminuiu, pois seria possível acessar o centro (onde estão concentrados os empregos) em poucos minutos usando o carro, isso fez com que houvesse o chamado espraiamento urbano, que é o crescimento da área ocupada pela mancha urbana de uma cidade.

Áreas centrais de diversas cidades do Brasil e do mundo foram construídas em períodos anteriores à popularização do carro, por isso não possuíam elementos necessários para a utilização deste meio de transporte. É comum encontrar nessas áreas vias estreitas e edifícios sem garagem, fatores que contribuíram para fazer com que seus residentes migrassem para áreas mais afastadas, nas quais novos prédios ou casas com garagem poderiam acomodar os carros e as famílias que vinham junto. Para tornar essas novas localidades conectadas ao restante da cidade, diversas obras viárias pipocaram ao longo do século XX: avenidas largas, vias expressas, pontes, viadutos, alças de acesso, vias elevadas, etc.

Com o abandono das áreas centrais, o aumento populacional em áreas mais afastadas e o aumento da frota de veículos (vale destacar também que o aumento da renda possibilitou que mais gente passasse a ter condições financeiras de adquirir um veículo próprio), houve um aumento significativo de uso do carro e, portanto, dos efeitos negativos que tal forma de locomoção traz para a cidade: aumento do congestionamento, aumento da poluição, aumento do número de acidentes e maior necessidade de consumo energético.

Com as questões ambientais cada vez mais em pauta, diminuir a emissão de gases de efeito estufa e reduzir o consumo energético passaram a ser prioridades nos grandes centros urbanos. Medidas como a transição para uma frota de veículos elétricos (tanto carros quanto ônibus) são um passo importante e necessário para reduzir a emissão de poluentes atmosféricos e frear o consumo de combustíveis fósseis, porém alguns problemas como a ocorrência de acidentes e de congestionamentos persistiriam no caso da troca de um motor movido à gasolina por um motor movido à bateria elétrica; teríamos apenas a troca do congestionamento pelo chamado “Eco-congestionamento”. Do ponto de vista energético, existe uma vantagem em trocar um veículo movido a gasolina por um veículo movido a eletricidade, sobretudo num país como o Brasil, cuja fonte hidrelétrica possui grande participação na matriz elétrica. Ainda assim, a energia consumida por 30 pessoas que se deslocam usando cada uma um carro elétrico é muito maior do que a energia consumida por um ônibus elétrico transportando 30 pessoas. Pensando nessas questões, cidades e governos têm se esforçado para implantar políticas públicas que desestimulam o carro e favorecem outras formas de deslocamento, incentivando aquilo que é chamado de transferência modal (mudança na forma de se deslocar pela cidade). Criar uma rede de transporte público com corredores exclusivos de ônibus, repensar os estacionamentos públicos, tornar as ruas mais seguras e agradáveis para pedestres, reservar espaço para bicicletas e construir bicicletários fazem parte das medidas de desestímulo ao uso do automóvel.

Foi criado um conceito que reúne as ideias apresentadas nos parágrafos anteriores. Em latim este conceito se chama Desenvolvimento Orientado ao Transporte (DOT), sua tradução para o português é Transit Oriented Development (TOD). Dentre os objetivos das políticas de TOD podemos destacar três: promover o adensamento nas proximidades de transporte público estrutural, promover usos mistos (comércio no térreo e habitação nos demais andares, por exemplo) em edificações e compactar as cidades.

Compactar a cidade é trazer as pessoas para mais perto dos grandes centros urbanos e para mais perto umas das outras. As vantagens oferecidas pela compactação das cidades são a redução dos deslocamentos e o favorecimento da oferta de transporte público, pois em uma área com maior concentração populacional é mais viável a implantação de linhas de ônibus, corredores de ônibus, estações de metrô e etc. Com muitas pessoas morando próximas e circulando sem usar carros, as ruas também se tornam mais vivas e mais seguras, o que é bom não apenas para a convivência, mas também para o comércio. Outra vantagem das cidades compactas é que com uma mancha urbana menos espalhada as pessoas que moram nas franjas da cidade (geralmente pessoas de baixa renda) têm menos dificuldade para se deslocar ao centro do que em cidades não-compactas.

Fonte: Instituto de Políticas de Transporte & Desenvolvimento

Vamos falar agora de algumas mudanças que ocorreram na legislação urbana brasileira dos anos 90 para cá.

A primeira mudança é a criação de um instrumento que diz respeito a um conceito já previsto na Constituição de 1988: a Função Social da Propriedade. A Constituição diz que um imóvel deve cumprir a Função Social da Propriedade, isto é, além de atender os interesses de seu proprietário o imóvel também deve atender os interesses da sociedade. Em grandes cidades, onde há pessoas que não possuem casa para morar, pessoas que moram em habitações precárias e pessoas que dispõem uma porcentagem excessiva de sua renda para arcar com despesas de moradia; um imóvel vazio é um exemplo de um imóvel que não cumpre sua Função Social. Existem alguns instrumentos para evitar que imóveis deixem de cumprir com esta função, como a cobrança de IPTU progressivo, que faz com que imóveis vazios tenham aumento anual no IPTU, podendo inclusive ser desapropriados pelo poder público caso fiquem muitos anos vazios.

A promulgação do Estatuto da Cidade, em 2001, também possibilitou a cobrança de mais um instrumento: a Outorga Onerosa do Direito de Construir. Outorga porque permite, Onerosa porque custa dinheiro. Lembra-se do conceito de Coeficiente de Aproveitamento? É a razão entre a área construída e a área do terreno. O princípio da Outorga Onerosa é o seguinte: cada área de uma cidade possui um CA Básico e um CA Máximo. Construções abaixo do CA Básico são sempre permitidas e construções acima do CA Básico e abaixo do CA Máximo são permitidas apenas mediante o pagamento de Outorga Onerosa. Por exemplo: suponhamos que um terreno possua 1.000m², CA Básico 2 e CA Máximo 8. Isso significa que neste terreno construções podem ter até 2.000m² de área construída sem a necessidade de nenhum pagamento adicional. Caso a incorporadora queira construir até 8.000m² isso é possível, mas para isso deve ser paga uma taxa proporcional ao que ele construir acima do CA Básico. Esta taxa é justamente a Outorga Onerosa e seu objetivo é fazer com que o poder público absorva parte do ganho financeiro proporcionado pelo desenvolvimento imobiliário da cidade.

Mas para onde vai o dinheiro da Outorga Onerosa? Depende do Município. Em São Paulo, por exemplo, foi criado em 2002 o Fundo de Desenvolvimento Urbano, chamado carinhosamente de FUNDURB. Boa parte dos recursos arrecadados pela cobrança de Outorga Onerosa vai para este fundo, que financia diversas obras em todo o território paulistano, inclusive em áreas mais carentes de investimento. Como a Outorga Onerosa é cobrada em áreas de maior desenvolvimento imobiliário e o FUNDURB pode ser aplicado em diversas áreas da cidade, o fundo, se bem administrado, tem potencial para ser um grande aliado na política de distribuição de recursos pelo território do município.

O IPTU Progressivo, a Outorga Onerosa e o FUNDURB são valiosos instrumentos que permitem que o desenvolvimento imobiliário de uma cidade contribua para uma cidade mais justa. É evidente que muito ainda deve avançar na questão da efetividade destes instrumentos, mas é importante ressaltar que na época em que o Castelo Rá-Tim-Bum foi criado estes instrumentos sequer existiam.

Agora vamos voltar a falar de um personagem que foi citado brevemente neste texto: o Dr. Abobrinha. Assim foi apelidado Pompeu Pompírio Pomposo, um indivíduo que frequentemente tentava enganar os habitantes do Castelo dando-lhes um papel para colher alguma assinatura dizendo que era uma permissão para algo, quando na verdade se tratava de um contrato de venda do Castelo. É muito provável que o Dr. Abobrinha quisesse construir um edifício pela grande quantidade de dinheiro que a venda dos imóveis lhe proporcionaria. Sua ganância inclusive está presente na sua fala, quando o pronome possessivo “meu” gradualmente se transformava em uma risada maléfica sempre que pronunciava o bordão: “Um dia este Castelo será meu! Meu! MEU! MUA! MUAAHA! MMMUUAAHHHAAHHHAAH”. Dificilmente o Dr. Abobrinha pensava em construir um prédio com o intuito de adensar áreas centrais dotadas de infraestrutura de transporte público de massa como forma de promoção de políticas de TOD, até porque tal conceito nem existia na época. Também o Dr. Abobrinha não contava com a cobrança de Outorga Onerosa para destinar recursos ao FUNDURB de modo a permitir o financiamento de obras em regiões menos estruturadas da cidade, afinal não havia FUNDURB naquela época.

Prédios altos antigamente costumavam ser um símbolo de pujança econômica, além de expressar visualmente um certo falocentrismo. Os arranha-céus de Nova Iorque eram uma forma de mostrar pra cidades europeias que os Estados Unidos da América não eram mais uma velha colônia e que Nova Iorque estava chegando pra competir com Londres e Paris pelo posto de centro do capitalismo ocidental. Países em desenvolvimento frequentemente erguem edifícios monumentais para mostrar que também querem ser parte relevante do capitalismo ocidental. Hoje em dia o crescimento econômico sustentável começa a ganhar importância em detrimento da pujança econômica em si. Seria melhor se, ao invés de competir para ver quem tem o edifício mais alto, as cidades competissem para ver quem tem a menor participação de deslocamentos por automóvel no total de deslocamentos. Contudo, devido à dificuldade em associar porcentagem de deslocamentos ao tamanho do órgão genital, muitos adultos inseguros de sua masculinidade ainda preferem que suas cidades construam prédios cada vez mais altos, exatamente como pensavam os adultos inseguros de sua masculinidade de um século atrás.

É bem provável que o Dr. Abobrinha tenha muito mais bom gosto do que a esmagadora maioria dos incorporadores imobiliários, pois estes jamais teriam ousadia e discernimento estético para usar ternos coloridos com estampas xadrez e boina, como fazia o saudoso Dr. Pompeu Pompírio Pomposo. Porém, a eventual venda do Castelo para a construção de um prédio de 100 andares representaria uma perda inestimável para a educação das crianças brasileiras. Imagine o quão monótono seria se a TV Cultura ao invés de filmar passarinhos tocando música e ensinando nomes de instrumentos filmasse o interior de um prédio no qual se passaria uma cena completamente cotidiana, tipo um idoso almoçando frango, um jovem solitário contemplando com ar de descontentamento uma pia cheia da louça ou adulto lendo jornal. Por isso os espectadores do programa sempre torciam pelo fracasso das investidas do Dr. Abobrinha.

Mas vamos lembrar que a proposta desta reflexão é sairmos da condição de espectadores do programa e nos colocarmos no lugar de cidadãos da cidade na qual o Castelo se localiza. O Castelo é um edifício de valor estético muito maior do que os outros edifícios de seu entorno, porém é uma residência unifamiliar em área central com densidade demográfica baixíssima (3hab/ha). Com exceção de Pedro, Biba, Zequinha, Penélope, Bongô, Caipora e Etevaldo; os cidadãos comuns não são frequentadores do Castelo, por isso não se beneficiam das leituras de excelentes poemas pelo Gato da biblioteca nem das performances de artistas na caixinha de música.

Talvez um edifício de uso misto, com bastante densidade demográfica e comércio no térreo proporcionando um ambiente urbano agradável de se caminhar pudesse contribuir para a compactação da cidade, diminuindo tempos de deslocamento, otimizando a estrutura de transporte público disponível e tornando passeios a pé mais agradáveis e seguros. Com a cobrança de Outorga Onerosa ainda seria possível arrecadar fundos que poderiam ser destinados a obras de infraestrutura em locais da cidade nos quais há maior necessidade de investimento público. A eventual replicação deste pensamento em outras áreas centrais poderia gerar um aumento da população no centro, fazendo com que imóveis em áreas mais afastadas fiquem disponíveis, o que, juntamente com a garantia do cumprimento da Função Social da Propriedade, pode resultar na queda dos preços de aluguel nas áreas mais periféricas. Tais efeitos seriam benéficos para todos os cidadãos da cidade hipotética.

Epa, Peraí! Isso quer dizer que eu sou favorável à demolição do Castelo para a construção de um prédio de 100 andares?! Não, caros leitores e caras leitoras, não sou. Daqui a pouco explico com mais detalhes o porquê. O intuito deste texto é debater sobre as recentes mudanças nos paradigmas do planejamento de cidades e conscientizar a respeito da importância do uso de instrumentos urbanísticos para a garantia de que as cidades estão se transformando em lugares melhores para se viver. Usei o Castelo para tornar a leitura mais agradável, se você chegou até aqui é porque minha estratégia deu certo.

Mesmo não sendo favorável à substituição do Castelo por um edifício que segue princípios das políticas de TOD, é importante frisar a importância da implementação de tais políticas, que podem tornar as cidades locais mais justos socialmente e mais agradáveis de se viver. Como cidadão paulistano os meus edifícios preferidos dentre as milhares de edificações da cidade são o Conjunto Nacional e o COPAN, pois mesmo não tendo a beleza estética de um Teatro Municipal eles possuem um valor para a cidade que vai além da estética. A começar pelos térreos dos edifícios. Adoro caminhar sobre o belo chão de pedras portuguesas do Conjunto Nacional, passar pela livraria, tomar um café, assistir um filme no cinema que fica descendo uma escada dali e tomar outro café na cafeteria localizada em frente às salas de cinema; como também adoro passear pelas vielas curvilíneas do COPAN enquanto observo as vitrines e o movimento dos bares. O fato de estes edifícios estarem localizados em áreas centrais dotadas de infraestrutura de transporte de massa também é muito importante: imaginem se não houvesse o COPAN, onde morariam as pessoas que hoje moram lá (algumas milhares de pessoas, o equivalente a uma cidade pequena do interior)? É capaz que procurassem apartamentos ali perto (o que encareceria o preço dos aluguéis na região), ou então que fossem para lugares mais afastados (o que além de encarecer o preço dos aluguéis destes lugares tornaria essas pessoas menos propensas a usar transporte público e mais propensas a se locomover de carro, trazendo malefícios para a cidade como um todo).

Apesar da minha preferência, não acho que o Teatro Municipal deva ser substituído por mais um COPAN ou um Conjunto Nacional. É um privilégio para os paulistanos poderem contar com um teatro daqueles, no qual eu já vi desde óperas e concertos de música clássica até um show do Pepeu Gomes tocando um maravilhoso medley de chorinhos em versão Rock’n’Roll. O fato de existir um edifício como o Teatro Municipal faz com que a cidade seja um lugar melhor, pois proporciona um excelente local para exibição de eventos culturais. Mesmo defendendo políticas de TOD, não defendo que rigorosamente todos os terrenos localizados em área central dotada de infraestrutura urbana devem ser substituídos por um edifício com características de TOD. Diversos outros terrenos em áreas centrais não trazem benefícios diretos para a população e poderiam dar lugar a novos edifícios que sigam as diretrizes de TOD, como é o caso em São Paulo de boa parte do bairro dos Jardins (no qual associações de moradores entusiastas de intervenções do Estado na economia atuam para barrar construções que aproveitem melhor os terrenos, o que afasta incorporadores) e dos Centros de Treinamento do São Paulo FC e do Palmeiras, ambos localizados no distrito da Barra Funda, cuja densidade demogáfica é inferior a 26 hab/ha.

Por fim, mesmo sem utilizar expressões como “paspalhos”, “apuros” e “boboca”, chegamos naquela parte presente em todos os filmes dublados que passavam de tarde na TV aberta: o final em que o protagonista, apesar dos conflitos ao longo da trama, vence o vilão e todo mundo pode assistir tranquilamente a reprise de novela antiga que passa logo em seguida. A diferença é que aqui veremos a defesa da manutenção do Castelo Rá-Tim-Bum ao invés de vermos um cachorro falante fazendo a cesta da virada no último minuto da final do campeonato de basquete, garantindo um prêmio cuja quantia é exatamente o valor necessário para pagar a dívida do orfanato e evitar que o mesmo seja transformado num campo de golfe. Para os moradores da cidade hipotética na qual se localiza o Castelo, o retorno que o edifício dá para a sociedade não é dos maiores, conforme já argumentei aqui. Porém, nós (cidadãos e cidadãs do mundo real) que acompanhamos o universo do Castelo de dentro da edificação temos uma boa noção do quão agregador para a cultura é aquele lugar. Imaginem o quão positivo pra cidade seria se o Castelo fosse um equipamento público, aberto à população: o Gato da Biblioteca faria sessão de leituras de poesia para alunos da rede pública de educação, o Tatatossauro do Tíbio e do Perônio poderia ser estudado por algum hospital de veterinária, os passarinhos fariam apresentações musicais para o público, o ratinho faria workshops de conscientização sobre a importância de escovar os dentes e os dedinhos cantantes ensinariam as operações básicas de aritmética. Certamente outros terrenos poderiam dar lugar a edifícios que seguem os princípios de TOD e o Castelo poderia permanecer onde está, inclusive o belo jardim em sua frente poderia ser usado como local de passeio.

Saindo da cidade hipotética e voltando para as nossas cidades brasileiras, faço o convite para os leitores e leitoras para que reflitam em suas respectivas cidades reais sobre densidades demográficas, cidades compactas, usos mistos, comércio no térreo e bairros agradáveis e seguros para caminhar ou andar de bicicleta. Também espero que passem a prestar atenção se na sua cidade a Função Social da Propriedade está sendo devidamente cumprida, se a Outorga Onerosa está sendo bem cobrada e, em caso afirmativo, se o dinheiro arrecadado por este instrumento está sendo bem utilizado pela cidade. E da próxima vez em que passarem por um edifício não pensem apenas “nossa, que prédio lindo”, mas também “nossa, que densidade adequada para uma área central dotada de infraestrutura de transporte público de massa”.

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Júlio Caldeira
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Unusual approaches on City Planning

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